domingo, julho 02, 2006

Montesquieu Revolvido

"Interpor providências cautelares para impugnar decisões do Governo e das autarquias está a tornar-se moda. Estão a invadir os tribunais, diz o presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), havendo o sério risco de se estar a violar o princípio da separação de poderes, avisa o constitucionalista Paulo Rangel, e o perigo de se politizar a justiça, alerta a jurista Adelaide Menezes Leitão.
Em causa está a entrada em vigor do novo Código do Contencioso Administrativo, a 1 de Janeiro de 2004. Os portugueses, de repente, ficaram com o acesso facilitado a uma "arma" capaz de paralisar a administração pública. Ao interporem uma providência cautelar, com o objectivo de suspender a eficácia de uma decisão, obrigam os tribunais a avaliar as medidas da administração, central ou local. Em última análise, cabe aos juízes deliberar se um determinado acto político pode ou não ser executado. Uns temem o risco de um "governo de juízes". Receio por outros considerado "mera falácia". O debate está lançado.
Enquadra-se aqui, por exemplo, a construção do túnel do Marquês de Pombal, em Lisboa. A providência cautelar que visou impugnar a obra provocou um prejuízo de quase quatro milhões de euros - sem que o objectivo fosse alcançado. A mesma diligência contra a construção da nova sede da Polícia Judiciária, em Caxias, causou prejuízos ao Ministério da Justiça ainda por contabilizar. O montante, ao que o DN apurou, poderá rondar os 15 milhões de euros. Os avultados prejuízos materiais tornaram estes dois casos emblemáticos. Mas, actualmente, as autarquias confrontam-se com centenas de situações semelhantes. Em 2004, os tribunais administrativos receberam 965 procedimentos cautelares. No ano passado receberam 1035.
Com menor impacto financeiro, mas enquadrado na mesma problemática, assistiu-se também ao chamado caso do barco do aborto. Em Agosto de 2004, o Governo impediu a entrada em águas territoriais portuguesas do barco da organização Women on Waves. Várias associações pró-aborto interpuseram no tribunal uma providência cautelar para suspender a decisão. Terá havido, em todos estes casos, mistura de poderes?
O ministro da Saúde, Correia de Campos, indignado com a decisão do Tribunal de Penafiel de suspender o fecho da maternidade de Santo Tirso (entretanto concretizado), também em resultado de uma providência cautelar, apelou ao princípio da separação de poderes entre Governo e tribunais.
De facto, "tal como as regras estão consagradas, há o risco de se violar o princípio da separação de poderes - colocando os tribunais a desenvolver tarefas que são materialmente administrativas ou político-administrativas", afirma Paulo Rangel, constitucionalista e deputado do PSD.(...)
O recurso às providências cautelares tem aumentado exponencialmente. "Em determinados tribunais, nomeadamente dos centros urbanos, a entrada de providências cautelares tem sido tal que outros processos, designadamente as acções administrativas especiais, que representam cerca de 50% do total de processos, ficaram praticamente parados."
A queixa é do presidente do STA. "Em nome da plenitude da tutela, torna-se necessário refrear", afirma Santos Serra. E avisa: "Importa resistir, com determinação, ao impulso de trivialização deste tipo de processos." Quanto ao perigo de os juízes poderem "favorecer de forma desproporcionada e injustificada" os requerentes de providências cautelares administrativas, Santos Serra adverte: "Nada se deve substituir ao bom senso e à ponderação, exigindo-se a autocontenção dos juízes mais voluntariosos, sempre sujeitos ao risco de precipitação na consideração dos vários interesses em conflito."(...)
Mas há quem refute a possibilidade de os poderes se misturarem. "Em Portugal, os tribunais administrativos não controlam o mérito das decisões administrativas. Por isso, não há nenhum perigo de politização. Os juízes só apreciam se a decisão é ou não legal. O controlo do mérito não existe em Portugal." A explicação é de Vasco Pereira da Silva, especialista em direito administrativo e um dos "pais" do novo Código do Contencioso Administrativo.
Para Mário Aroso de Almeida - também "pai" daquele diploma - "o argumento da obstaculização da actuação política do Governo é uma enorme falácia". O professor da Universidade Católica do Porto adverte: "O que não se pode é, a pretexto de pretender evitar que possam ocorrer situações pontuais de incorrecto exercício dos tribunais, defender a insindicabilidade judicial da actuação administrativa, designadamente no plano cautelar, o que seria pôr em causa os próprios fundamentos do Estado de direito."
Mas há quem discorde. "Todos os tribunais administrativos, desde a primeira instância até ao STA, podem introduzir um controlo político da actuação governativa camuflado por um controlo da legalidade", garante Adelaide Menezes Leitão, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Para Paulo Rangel, "o actual regime obriga os juízes a fazerem juízos de prognose - que, em muitos casos, são mais 'políticos' ou 'administrativos' do que jurisdicionais". E acrescenta: "Para não pegar no exemplo das maternidades, que está muito 'quente' e no qual houve recurso a instrumentos diversos que merecem uma avaliação caso a caso, basta lembrar a providência introduzida aquando do barco do aborto."
Rui Machete também não afasta o risco da politização da função jurisdicional. Para este antigo ministro da Justiça, o diploma é bom. Mas "exige uma maturidade democrática ainda não alcançada em Portugal". Por isso, aconselha aos juízes uma atitude de "contenção", refutando que se mexa na lei.
Mota Campos, antigo secretário de Estado da Justiça, do CDS/PP - e um dos promotores do novo Código -, reconhece o exagero de providencias cautelares entradas nos tribunais desde 1 de Janeiro de 2004. "Passou-se do oito ao oitenta." Em sua opinião, o STA terá, por acórdão, de "definir os critérios que justifiquem os deferimentos".
O Ministério da Justiça, questionado pelo DN, informou que a avaliação do novo Código está em debate público, admitindo a introdução de aperfeiçoamentos em 2007." RETIRADO DO DN ONLINE